quarta-feira, 4 de julho de 2012

HOJE É DIA DE FUTEBOL!

Desculpa a mudança repentina de assunto, mas hoje é dia de futebol! E esse é o texto que melhor explica a dor e a delícia de ser corintiana, como eu sempre fui.
Pele arrepiada, lágrimas e muito, muito sofrimento é o que se espera do dia de hoje, desde que ele começou. E é por isso que eu não consigo escrever sobre mais nada!

Até amanhã!




Milly Lacombe

Não é verdade que só o corintiano sabe o que é ser corintiano. Eu não sou corintiana e vou contar que sei o que é ser corintiana.
Também não é verdade que o corintiano já nasce assim. Eu não nasci corintiana. Não fui, e não sou, corintiana até meus 30 anos – há 13, portanto.
É por isso que na pele de uma autêntica não corintiana posso dar meu depoimento sobre o que é ser corintiana.

Sou torcedora do Fluminense. Cresci tricolor de coração, graças a meu pai, que depositou em mim o amor pelo Flu e, acima de qualquer crença, pelo futebol – e a quem, por essa e infinitas outras, devo eterna gratidão.
Fui uma criança fanática pelo jogo de bola, para desespero de minha mãe, que preferiria me ver de cabelos penteados e brincando de boneca.
E, como qualquer criança abençoada pela paixão clubística, aos sete anos, muito por culpa de Zico, eu tinha plena noção do que era sofrer.
Aos oito, já tinha entendido que não seria possível passar por essa aventura terrestre sem mergulhar em profunda dor.
E aos 10, mesmo não sabendo disso de forma racional, intuí que, de todas as grandezas do futebol, ensinar a sofrer talvez fosse a maior delas.
Passei pela adolescência tendo em mim o registro de sofrimentos profundos e a consciência de que deles eu sairia.
Não sei como teria conseguido atravessar os momentos mais escuros da vida adulta sem esse entendimento
Por isso, graças ao jogo, saí da adolescência com a noção de que, assim como nossa própria existência, o futebol não deve ser explicado ou reduzido a estatísticas, sob pena de tirarmos dele a maior de suas belezas.

Exatamente como o ser humano, que quando dissecado perde a alma, o futebol se decompõe se visto sob ótica puramente aritimética.
Trata-se de um jogo que deve ser, acima de tudo, sentido.
Entrar no Maraca e me misturar aos que estavam vestidos como eu, aos que cantavam como eu, aos que vibravam comigo e, especialmente, àqueles que sofriam minha dor passou a ser fundamental.
Não há no mundo comunhão maior do que dividir com alguém o sofrimento.
Muito mais do que na alegria, é na dor que nos reencontramos.

A torcida do Fluminense nunca foi a maior, mas sempre me emocionou às vísceras. Na vitória e na derrota.
Estar ali quando Washington colocou, de cabeça, a bola nas redes aos 48 do segundo tempo durante o mata-mata de Libertadores foi das experiências mais sobrenaturais que já provei.
A mesma sensação de fazer amor com a mulher de seus sonhos, de ficar entorpecida de paixão depois de uma noite de total entrega, de acordar no dia seguinte e pensar que o mundo é lindo, que a vida vale a pena, que experiência humana não é em vão, que existe um motivo.
O Fluminense fez isso por mim.
Incontáveis vezes, desde os meus cinco anos, o Fluminense me fez estar possuída por um Deus.
Nada glorifica mais do que a vitória, ainda mais quando ela nos é oferecida no finalzinho do jogo.
Mas não demorei a entender que só uma coisa nos humaniza – a derrota.
Só ela nos solidariza, nos une, nos resgata da ilusão.
O caos é, afinal, a origem de tudo. A partir dele, nos formamos e amadurecemos.
Enquanto isso, a vitória tem a diabólica qualidade de revelar nosso lado mais pernóstico, egocêntrico e arrogante.
Vencer é preciso, mas perder é fundamental – e isso o futebol me ensinou.

Em 1976, já morando em São Paulo, por motivos óbvios odiei o Corinthians acima de todas as coisas e declarei, na nova cidade, que seria são-paulina, movida pela vã ilusão de que um time você pode escolher como pega uma calça jeans na loja – experimentando e tornando sua aquela que melhor servir.
O São Paulo era escolha natural; time de meu irmão e tricolor como meu Flu.
Até pegar o São Paulo como segundo time, até ver o meu Maraca dolorosamente invadido em 1976, gostava de dizer a quem perguntasse que, em Oslo ou em Xangai, eu era torcedora do Fluminense.
E sonhava com o dia em que seria famosa, concederia educadamente uma entrevista e declararia ao entrevistador: Sou Fluminense aqui, na China e na lua. A resposta estava pronta desde os cinco anos.

Em 1977, mobilizei a casa aos prantos, gritos e esperneios exigindo que me levassem ao Morumbi para ver o Corinthians perder para a Ponte. Era minha forra particular.
Minha mãe, exausta com aquele escândalo, me arrastou pelos braços e me levou ao jogo, sob protestos de meu pai que dizia que éramos loucas.
Éramos. Somos.
Em dias de jogos normais, ao Morumbi íamos meu pai, meu irmão e eu. Depois, Sergio, o primeiro namorado e o primeiro namorado são-paulino em minha vida. Depois, Marco Fabio, o segundo namorado são-paulino, com quem eu passava tardes de domingo no Morumbi, para onde íamos a pé de sua casa.
Os anos foram seguindo e, diante da necessidade de esconder minha homossexualidade, o futebol perdeu um pouco do colorido.
Permanecer dentro do armário bravamente era meu único objetivo – e esse troço dava trabalho demais.
Em 1996, fui morar na Califórnia e, ainda sem a conveniência de um canal internacional de jogos e com a internet engatinhando, acabei me afastando completamente do esporte que tanto amei.
O que se revelou uma benção, porque não vi meu Flu na terceira divisão, embora alguns colegas de infância tivessem se dado ao trabalho de me zombar além-mar.

De volta a São Paulo depois de seis anos, desembarquei em família vitaminada por são-paulinos: fora o irmão, agora um total de três sobrinhos e dois cunhados completavam o elenco tricolor.
Minha mãe, italiana que chegou ao Brasil aos 15 anos, largou o Palmeiras e, em nome da alegria da prole, se fez são-paulina.
Foi quando se consumou a tragédia.
Já namorando mulheres oficialmente, acabei me apaixonando por uma que tinha esse grave defeito: torcia para o Corinthians.
Torcia, modo de dizer.
Descabelava-se. Chutava pé de mesa. Virava cambalhotas. Arrancava o couro cabeludo.
Tive, portanto, nenhuma chance de dizer não quando ela, sabendo de meu interesse pelo futebol, fez o convite para que fossemos ao Pacaembu.
Pacaembu, palco estranho naqueles meus 25 anos de vida em campos de futebol. Maracanã, Laranjeiras, Morumbi e até Canindé me eram mais familiares. Mas, resignada pelo poder da nova paixão, me arrastei com ela para o estádio.

Corinthians e Internacional. Jogo que não valia muita coisa, mas a casa estava cheia.
Na numerada, me comportei como deve se comportar o torcedor misturado aos rivais: da forma mais discreta possível. E logo no primeiro tempo, a alegria: gol do Inter.
E nessa hora o tempo deu uma parada.
Quem freqüenta estádios sabe que não há silêncio mais profundo do que aquele que se faz depois do gol do time de fora. Duro, seco, melancólico. A falta de som que só a incredulidade oferece.
Por outro lado, para o invasor invisível, trata-se de um silêncio repleto de prazer, cheio de doces nuances – ah, como é bom saborear a dor do rival olhando dentro dos olhos dele. Tão demasiadamente humano.
Foi precisamente esse silêncio que eu esperava ouvir naquela tarde.
E talvez tenha sido esse o instante em que tudo mudou. Talvez. Quase dez anos depois, não tenho como precisar.

Estava eu remoendo minha alegria solitária de ver o Corinthians sofrer um gol quando a torcida explodiu gritando Timão Eô Eô.
O que era aquilo? Que imbecis, pensei. O gol foi contra eles. Tontos. Malucos. Loucos.
Levemente chocada, tive que rir um pouco mais da atitude patética.
Naquela tarde, um sábado se não me engano, saí do estádio ainda sem saber que tinha sido para sempre alterada.
Os meses se passaram e eu repeti incontáveis vezes as idas ao Pacaembu.
Buscava, hoje sei, ouvir novamente uma torcida explodir na hora indevida.
Buscava a comemoração de um carrinho no meio de campo. Buscava contemplar a paixão de uma torcida capaz de vibrar com a bola chutada para a arquibancada, capaz de cair de joelhos por um lateral bem batido, capaz de começar a cantar o hino do clube sem motivo no meio de um jogo que nada vale.
Buscava o inimaginável, o impossível, aquilo que só os doidos, os alucinados, os destemperados alcançam. E o Corinthians foi me dando tudo isso, como que por encomenda.
Entrar no Pacaembu no embalo do canto da fiel passou a ser o que mais queria durante a semana. Sentir a pele arrepiada, os olhos cheios d’agua ouvindo 30 mil vozes vibrar com um gol sofrido. Doidos que me encantavam. Malucos que me provavam viva.

Até que um dia me peguei aos prantos depois de uma derrota.
Dizem por aí que o corintiano se revela na dor. Meu corintianismo, pelo menos, foi assim revelado.
O Fluminense me ensinou a sofrer, me mostrou que a alegria e o êxtase só podem ser colocados em perspectiva diante do registro da dor e do desgosto.
E o Corinthians me ensinou que podemos entrar na dor e saboreá-la de um jeito estranho, mas necessário. Que podemos deixar que ela fique ali, que cumpra seu papel, que continue a nos humanizar e a nos revelar.
E que talvez exista uma forma de celebrá-la, de ritualizá-la, de deixar que ela nos reconecte à realidade – uma propriedade que só a tristeza oferece; nunca a alegria.
O Corinthians me mostrou que existe poesia na dor.

Acho que quase todo mundo já experimentou a agridoce sensação de se apaixonar por alguém que não devia. De se sentir traindo um grande amor. De se envergonhar pelo sentimento inadequado.
Foi isso o que senti naquele dia. Estava apaixonada por um time que não era o meu. Doida de amor por cores que não eram as corretas.
Meu pai, que me deixou cedo demais, talvez pudesse me entender; ou, como fazia tão bem, me explicar. Mas ele não estava mais.
Amar duas pessoas não é impossível, como quase todos sabem. Socialmente, e por convenção, temos que a paixão dupla é proibida, é imoral, é vergonhosa.
Entre paredes, entretanto, sabemos que não é bem assim.

Virei uma ilha. Única alvinegra cercada por uma multidão de são-paulinos: nove sobrinhos, um irmão, dois cunhados e, mais recentemente, o amor de minha vida, a mulher com quem passarei os próximos 50 anos, se ela assim deixar.
Eram, até o fechamento desta edição, 13 – ou 14 se contarmos outro tricolor por quem me apaixonei, Mauricio Svartman -, a me perseguir e me azucrinar.
Para minha desgraça particular, são são-paulinas as pessoas que mais amo no mundo.
Mas experimentar esse corintianismo me permitiu alcançar um estado de espírito que, se atingido mais vezes e por mais pessoas, até por mim em diferentes situações da vida, poderia melhorar o mundo – você na pele do rival.
Você sentindo o que sente o outro. Você vivendo a dor e a delícia de ser seu próprio inimigo. A cura pela troca. A benevolência pela inversão de papéis.

Como nunca fui muito dada a convenções, decidi assumir as duas camisas.
Achando, claro, que dificilmente teria que conviver com a trágica situação atual: meus dois times liderando o campeonato.
Então, toda essa enrolação foi para dizer que os dias de rodada não têm sido fáceis. Sentimentos misturados, contradições dolorosas, sensações bipolares, saudade monstro de meu pai.
O que fazer?
Talvez o melhor seja mesmo tomar a atitude da menina que se vê flagrada pelo namorado enquanto saboreia um sorvete com o amante na praça em pleno sábado à tarde: pegar minha parte do doce, sair de fininho e deixar que se entendam.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Gente, esse texto eh lindo.
    Tah aih o que tento explicar quando falo do Bahia e do Corinthians. Confesso que em uma decisao entre os dois eu fico sempre com o Bahia.
    Mas hoje a minha camisa azul e vermelha ficou na gaveta e deu lugar pra roxa. =)
    #eununcavouteabandonar

    @moemacarvalho

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